Inspiração



Um bocadinho de mim em palavras soltas, libertas pela digitalização da mente.

quarta-feira, 13 de setembro de 2017

Sentava-se sempre na mesma mesa, convicta que era aí o lugar que a inspiração escolhia para esperar por ela.
Falava-lhe baixo. Num tom de secretismo que denunciava a intimidade com que se conheciam. Do avesso talvez fosse a expressão certa.
Tentara sentar-se em outras coordenadas mas aí acabara sempre sozinha. Numa conversa demasiado barulhenta com os demónios que guardava na sua mente.
O conhecimento interno daquilo que queria deu-lhe a certeza que reclamar como sua a mesa do canto, aquela onde a luz incidia de viés e lhe trazia o pó brilhante do sol perfeitamente calibrado, não só era o mais consciente a fazer como uma necessidade premente e justificável aos olhos racionais do resto do mundo.
Chegava cedo. Pedia o seu café curto. Forte. Em chávena fria, quando a sua temperatura rivalizava com o vapor escuro que insistia em tomar.
Nunca pedia nada para comer. Quando a sua alma estava tão cheia de histórias não lhe cabia mais nada.
Ninguém a incomodava. Dirigiam-lhe sorrisos abertos, mimetismo daqueles que ela própria oferecia quando os olhares se cruzavam.
Tinham aprendido a gostar da sua presença silenciosa, mesmo quando a surpreendiam a observá-los fixamente. Hábitos enraizados de quem procura na normalidade alheia argumentos válidos para a própria loucura.
Escrevia sempre num caderno gasto e encadernado com pele grossa , num tom avermelhado que lhe trazia de volta histórias antigas. Fantasiosas na sua época, reais na densidade das teias emocionais que se lembrava de trilhar. O amor é sempre complicado, não importa se o vestes de ganga ou o apertas em corpetes e folhos.
A sua caligrafia era redonda, equilibrada, tão desfasada do turbilhão que ela era que se sentia sempre uma usurpadora da essência dos que escrevia.
Ultimamente a sua inspiração contava-lhe sempre a mesma história. Usava, pela primeira vez, uma ordem diferente em como lhe apresentava as personagens. Começava pelas cicatrizes dele. As que eram mais visíveis aos olhos do espírito do que aos olhos castanhos escuros que se resolviam a observá-lo. Mostrava-lhe todos os contornos do que o magoava mas não parecia haver maneira de se alongar nos traços físicos.
Isso baralhava-a. Não lhe conseguir atribuir um rosto atrapalhava-lhe a lógica e fazia-a rabiscar, vezes sem conta, as suas imaculadas folhas brancas.
Reclamou durante dias. Implorou uma mudança. Procurou-o nos rostos alheios que entravam no café. Pediu clemência à sua parceira e chegou mesmo a considerar recusar aquela demanda.
Como escrevê-lo sem lhe saber o tom da pele? Sem lhe conhecer o esgar de impaciência quando se demoram a trazer-lhe o pedido?
Rascunhou-o. Tentou enunciá-lo em frases curtas. Adjetivos certeiros mas generalistas.
Tudo lhe parecia tão vazio que acabou por abandonar a premência de uma descrição física. Decidiu ouvir os seus segredos e registá-los em surdina. Arrepiou-se ao sentir-lhe os contornos das feridas. Identificou-se ao ouvir-lhe os medos. Chorou com ele quando entendeu o quanto isso lhe roubava a vida. Doeu-lhe a sua partida mesmo nunca lhe tendo saboreado a ausência.
Quando lhe descobriu o ritmo certo, escreveu-o a uma velocidade alucinante. E quando o sentiu como seu. Quando se ligou a ele de uma maneira tão profunda que o levava consigo para todo o lado. Quando lhe decorou o âmago e se abriu à vulnerabilidade de o poder sentir a sua fiel companheira trouxe-lhe a sua imagem.
Sem a avisar. Sem lhe dar tempo para se preparar. Um flash momentâneo mas que lhe trouxe o reconhecimento quando o viu entrar no seu café de sempre. O mesmo flash que lhe garantira que, no meio da sua narrativa, se tornara personagem naquela história e se apaixonara de forma indelével por aquele a quem mapeara as feridas mais profundas.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Porque não me deixas tu ir? Porque me prendes em ti com amarras fortes que não me prendem. Não, não me prendem!  
Não fiques confuso com o que te disse. As tuas amarras não me prendem, atraem-me. Magnetizam-me. Puxam-me até ti, mesmo quando grito que não te quero. Não há nada mais poderoso do que isso.


Por isso te peço baixinho, em confidência. O segredo entre dois amantes.

Não me queiras mais. Repele-me e permite-me a liberdade. Repudia-me. Sê mais forte do que eu e retira-me de ti. Deixa os meus sonhos e dá-me um sono tranquilo. Sem lembranças demasiado vivas do teu corpo junto do meu, da vibração da tua voz no meu ouvido.

Viaja comigo uma última vez e no meio do paraíso deixa-me fugir de ti. Não me persigas. Não chames o meu nome nem por uma vez. Ama-me uma última vez e abandona-me. Não tenhas medo que me perca.

Peço-te em clemência. Com o desespero de quem se fundiu até não ter contorno.

Preciso de me perder de ti para me encontrar a mim.

A musica abraçava todo o ambiente. Até o ar respondia ao compasso escondido por trás das cortinas de fumo branco. 
A saia leve envolvia-lhe o corpo e ajudava a definir-lhe o contorno do corpo quando ele ameaçava desaparecer, fundindo-se com o que a rodeava. Numa tentativa vã de se agarrar ao mundo físico pediu uma bebida. Olhou em volta tentando concentrar-se e talvez responder a alguns acenos de reconhecimento que pressentia existirem por entre a multidão. Mas, nesse momento já os decibéis lhe afloravam a pele provocando um arrepio continuo que se estendeu até ela obedecer ao seu instinto mais primitivo, abandonar os saltos altos e sentir o batimento cardíaco acompanhar a letra da canção. O corpo reagiu com a velocidade de quem reconhece a libertação, o limiar do extâse, o encontro de si mesma no meio do barulho de fundo da realidade. Com movimentos suaves, sensuais, naturais e tão instintivos que lhe toldavam todo o pensamento deixou-se ir. Criou um casulo de luz e som só seu e ,apenas ao longe, pressentia o quente dos olhares de quem lhe reconhecia a energia, de quem lhe gabava a loucura, a ligação ao chão que pisava, a permissão de ser mais ela própria. E foi assim até a música esmorecer e o sorriso que lhe adornava o rosto ocupar mais espaço do que todas as almas que por ali tinham passado naquela noite. Foi assim até ela se permitir descer à terra e perceber que, enquanto sentia as gotas de suor percorrer o caminho curvilíneo até ao fundo das suas costas de bailarina, a sua bebida era única ainda meio perdida na mesa , esperando que o divino se ligasse finalmente à terra e lhe cumprisse o propósito.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2015

Não faz mal estar triste no Natal *




Não faz mal estar triste no Natal.

Não faz mal chorar no Natal. 

Não faz mal estar triste no Natal. 

Não faz mal chorar no Natal. 

Repeti isto, várias vezes, durante o último mês. Em repeat, na minha cabeça, enquanto me movia ao som da rotina dos dias. Na meia dúzia de anos que me separa de quem me criou fi-lo quase inconscientemente. Rio e gargalho. Faço palhaçadas e danço até precisar de trocar os saltos pelas pantufas quentinhas. 
Escondo a lágrima e substituo-a por uma tirada espirituosa. Não se está triste nas festividades! 

É época de celebração, de agradecimento, de amor. É como uma lei. Principalmente na minha cabeça. Desorientava-me a possível pena. Coitadinha nunca foi o meu nome do meio. Negação, o medo de admissão da fraqueza. Vergonha da ferida que fica mais à mostra.
Com a aceitação e crescimento veio finalmente a verdade: Dói-me mais a ausência dos meus pais nesta altura do ano! 

Ufa! Escrevi-o alto! 

Quando ouvi estas palavras pela primeira vez soou-me a clichê. A frase feita de quem não sabe de que é feita a dor e quais as suas arestas. Soa às palavras ensaiadas de estranhos que se cruzam na nossa vida brevemente e, quando sabem que nos desapareceram as raízes, nos batem no ombro com condescendência enquanto sussurram um: “ Nesta altura do Natal é sempre mais difícil, não é?”. 

Quando se dá o choque, a dor inicial, a que nos cega, e que pode vir só anos mais tarde, retardada e vagarosa mas implacável, rejeitamos esse tipo de comentários com desdém e um encolher mental de ombros. Sai-nos um trejeito de arrogância, de conhecimento absoluto e pensamos que eles nada sabem. Vai custar todos os segundos de cada dia. Vou parecer sufocar a cada instante porque eles não estarem vai doer-me na pele. Saímos rancorosos de uma conversa que deveria ser embalada em empatia e amizade. Sai-nos o fel do desplante de nos atirarem com frases feitas. 

Mal sabemos que, no meio de tudo aquilo, está a maior verdade. O tempo passa, a rotina instala- se e a ferida está lá mas nem sempre aberta. Os amigos fazem-nos rir, os nossos filhos enchem- nos de amor, a paixão rouba-nos a razão e enche-nos o peito de esperançosas borboletas. Até que, por apenas breves horas, esquecemo-nos da perda. Lembramo-nos num impulso ao agarrarmos no telemóvel para contarmos a tropelia que o Miguel fez e que é tal e qual à que o tio fazia. Quando olhamos o número que procurámos é que nos apercebemos. E dói-nos a alma mas gritamos uma frase solta ao coração: ”Que palermice!” e ele reveste-se da armadura, aquela que tecemos com o esmero de quem espera uma batalha eterna.

E a dor atenua, amedronta-se com o aço da nossa racionalização. 

Mas em épocas festivas, em que a família se junta e se fervilha de expectativa de partilha, aí não há armadura que nos proteja o coração, a alma, o âmago de quem somos, a criança pequenina que se sente sozinha. E custa-nos o desfazer da festa. O pensarmos estragar a felicidade dos outros com a tormenta da nossa história. 

Escondi-me bem durante alguns anos mas quando a aceitação, tímida, finalmente chegou o encontro foi abrupto. Uma consoada passada em casa, longe da maior parte das pessoas que amo, com cara de bolo de bolacha molhado a café e sem açúcar. Achei que se era para aceitar que fosse em modo total. Doeu-me mais. Errei no caminho. Era tarde para voltar atrás a tempo da festa. Perdi-a. Tentei encontrar o caminho certo este ano. 

Estas festas encontrei finalmente o busílis da questão: Não faz mal estar triste durante o Natal. A lágrima pode correr quando vejo o meu filho abrir prendas e me lembro de como seria bom eles conhecerem-no e verem-no crescer. O coração pode ficar apertado quando vejo aquela prenda que foi feita para o meu pai e que agora não o posso ver usar. A voz pode tremer quando falo nos Natais passados em conjunto, em que estávamos todos juntos e nos relembrávamos de que amar é mais importante do que ter. Os joelhos podem vacilar quando olho para a minha irmã e vejo o olhar da minha mãe, ou quando ouço a voz do meu irmão do outro lado da linha e as ondulações das palavras me fazem lembrar o meu pai.
 O segredo é revestirmo-nos de amor e abraçarmos a saudade. Ela vai lá estar sempre.
No Natal dói-me sempre mais saudades dos meus pais. E está tudo bem.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Amo-te assim


Queria gostar de ti devagar, com languidez e deleite, ternura e comedimento. Como nos livros que me ensinaram a ler. Com a condição de “senhora”, ligeira nos seus gestos, morna nas suas entranhas.
Mas a vida não me ensinou a amar assim. Amo-te sofregamente, com uma fome em nada mediana, um desejo absurdo de me fundir em ti, sem palavras pelo meio a atrapalhar o fulgor dos suspiros trocados.
Quebras-me os padrões, as amarras cristalinas e tão bem delineadas daquilo que nos envolve. Levas-me ao limite do absurdamente e irrevogavelmente apaixonada e mesmo assim em ti sou mais livre, mais completa, mais eu. É na posse de te poder gostar sem predefinições que me sinto mais leve, mais aventureira, mais feliz. Com a aceitação deste misto de sentimentos selvagens que me tomam o corpo ao mais leve toque da tua pele deixo-me ir sem medos. És o fogo que preciso para queimar o combustível que me faz mover. Dança intempestiva misturada com passos vagarosos em direção a ti. 

(Com a inspiração de D. Teresa de Távora, deliciosamente descrita pela maravilhosa Sara Rodi)

sábado, 4 de abril de 2015

Ressuscito-te



Hoje acordaste em mim. Irrequieto e barulhento afetaste-me a serenidade da dormência que o meu corpo exige. Quando te tentei afastar, com um abrir de olhos abrupto, puxaste-me novamente e afagaste-me a fronte. Fechei-os devagar e deixei-me ir só um bocadinho.
Vejo-te as rugas à volta da boca e a marca do tempo na testa larga que me lembra a severidade dos nossos dias juntos. Sinto-te o cheiro e abraço-te.

 Agora sou eu que não quero sair.

A realidade aborrece-me. Suspiro zangada e volto-me para o outro lado dos lençóis enrodilhados. Não gostas da distração e começas a fugir. Pegas no teu SG Gigante e no isqueiro com o desenho de uma senhora com demasiado calor e afastas-te. Não me dizes adeus, nem me beijas em despedida. É um até já forçado que perpetuas. Tem sido assim nas últimas semanas. Assaltas-me o sono, ajudas-me a derramar as lágrimas que guardei demasiado fundo e desvaneceste-te nas ruas cheias da minha memória de menina.

Mas hoje não.

Hoje não quero viver sem ti.

Sento-me na cadeira e procuro a luz do processador de texto. Vasculho pastas freneticamente, apalpo ritmos. Vou ouvir-te na voz de outros. Vou ressuscitar-te devagar e dolorosamente. 

Preciso de ti. 

Evoco a tua imagem. Passaram-se apenas uns escassos minutos mas já não te consigo definir tão bem. Escrevo com rapidez, respiro fundo e despojo-me um bocadinho mais do meu verdadeiro ser. Aqui estou eu sem filtros, como tu me preferes. Verdadeira e crua. Exageradamente transparente, homenageando a mulher que me ensinaste a ser.

As letras ganham força, ocupam espaço, enchem-me a alma da calma que preciso para te amar mais um pouco sem tanta distância a separar-nos. No meio das frases, das metáforas, das variações verbais, da falta de sentido que só esta paixão me pode dar tu voltas à vida. E já te voltei a sentir o cheiro, a decorar as rugas, a sentir a cor dessa pele morena que guardaste apenas para mais um afortunado.
Hoje revoltei-me contra a tua morte. O tu não estares aqui para me abraçares de manhã. Hoje revoltei-me contra a tua pausa para o cigarro que nunca tem retorno.

Hoje, no meio da minha escrita, tu ressuscitas e vives em mim.