Inspiração



Um bocadinho de mim em palavras soltas, libertas pela digitalização da mente.

terça-feira, 14 de agosto de 2012

A cinco passos de distância

E ali estava ela. Imóvel. Deitada no chão de mármore branco, sem nada que a escudasse do gelo cortante da superfície espelhada. Nua e silenciosa. Com a pretensão de ser mais desprendida do mundo material do que nós que a observamos. Vaidade de quem já perdeu o juízo, digo eu.Que na verdade sou a única que a observo por detrás desta parede de madeira talhada com uma janela que poucas vezes foi aberta e o recorte perfeito da fechadura. Espreito novamente pela abertura envidraçada, que me permite vê-la sem denunciar a minha presença. Sou invisível, inexistente no mundo alternativo em que ela escolheu viver. Devagar, como se tivesse medo de despertar os fantasmas que se escondem nos cantos vazios deste quarto, começa a mexer os dedos.Procura a luz que vem da única e estreita janela e que incide na parede despida e faz formas que não consigo entender. É uma linguagem própria, codificada que ela alia com sons indecifráveis e que se transforma rapidamente numa lengalenga frenética e agressiva. Só a noite lhe apazigua os medos.
Tentei gritar-lhe, ameaçá-la, bater com toda a minha força na porta mas nada resultou. Esqueço-me que para ela não pareço existir. 
Como a encontrei? O que faz com que viva comigo? Não sei...
Talvez tenha sido à tanto tempo que a minha memória apagou o momento da sua chegada dos registos da minha vida. Simplesmente acordei um dia e ela estava no quarto do fundo do corredor sentada na cama, olhando-me nos olhos, tentando descobrir os meus segredos. Deixei-a lá e não a incomodei. Não lhe fiz perguntas. Mas a loucura foi piorando e eu isolei-a. Do quê? Não sei bem... mas tentei sempre nunca pensar muito nisso.
Não sei o nome dela e nunca transpus a soleira da porta. Escondo-me e não me atrevo sequer a abrir a fresta que lhe traria o cheiro da minha vida. Não a enfrento porque sempre tive a sensação que iria doer.
Apesar de observá-la ser o meu passatempo - curiosidade mórbida de algo que escolhemos desconhecer - não consigo saber a cor do seu cabelo ou a sua altura certa. Não lhe conheço o cheiro da pele, nem os seus gostos mais básicos.  Não lhe perguntei porque nunca come, bebe ou parece até mesmo não dormir. Nunca trocámos uma palavra e nunca a ouvi proferir uma única frase com sentido. Ou então fui eu que escolhi não a compreender. Limito-e a coexistir com ela, negando ao mesmo tempo que ela lá está.
Sei que o nego a cada segundo mas reconheço nela meu lado mais obscuro materializado. Apenas a cinco passos de distância, no fundo do corredor.