Inspiração



Um bocadinho de mim em palavras soltas, libertas pela digitalização da mente.

terça-feira, 31 de agosto de 2010

Oscilação


A corda mostra-se firme à minha frente. Do outro lado dela, vejo um rosto familiar que me faz disparar o ritmo cardíaco. Os olhos azuis brilhantes fixam-me e fazem-me tremer. Daria tudo para que me transmitissem amor, mas bem no fundo tudo o que encontro é indiferença.
Avanço, dou um passo e olho a imensidão de espaço vazio por baixo de mim. O risco de cair aumenta a carga de adrenalina e desejo mais do que nunca a vertigem da queda…do esquecimento. Com uma pirueta no ar arranco à multidão um suspiro expectante, de medo mas também de admiração. Como eu gostaria que essa sensação passasse também para ti.
Sim, tu que me esperas do outro lado desta passagem fina e rugosa. Receber-me-ás nos teus braços mas não me acariciarás, apenas levantarás o meu braço e farás um trejeito encantador, porém falso, que te dará os aplausos de que tanto gostas.
Inclino a cabeça para baixo e observo com mais atenção os espectadores desta noite. Será que lhes daria hoje o espectáculo da sua vida, ou apenas lhes entregaria a dádiva de uma boa noite de espectáculo circense?
Será que sentirias a minha falta se o imenso vazio por baixo de mim me tragasse? Ou seria apenas a dor superficial da perda de alguém a quem já não amas?
Olho na tua direcção e tento esboçar pela última vez um sorriso carinhoso somente dirigido a ti, mas tu não reparas. Toda a tua atenção e amor estão concentrados na mulher atrás de mim. Aquela a quem agora amas. Aquela por quem me trocaste.
A dor trespassa-me e decido. Limpo as lágrimas e num último adeus ao meu público mergulho elegantemente, com firmeza  em direcção ao nada. Adormeço para sempre, vendo finalmente no teu olhar a dor de perder quem amamos.

(Triple-Drabble para concurso do Creative)

Despedida


O teu nome ressoa insistentemente na minha mente. Entre o nevoeiro que separa o nosso mundo da realidade de todos os outros, sei que já lá não estás. As ruas cheias que construímos estão agora desertas, como se fosse apenas a tua presença a enche-las. Eu já não sou suficiente. Nunca fui sem ti. As superfícies espelhadas que antes reflectiam os nossos sonhos agora apenas retribuem imagens de mim mesma. Cansada, triste e eternamente sozinha.
Estendo a mão e tento encontrar a tua, mas tudo o que encontro é espaço vazio, cheio de um ar sufocante que faz doer. A tua inexistência magoa.
O mundo real já não é palpável e eu afundo-me em ti. Em ti, que já não existes. Em ti, a quem peguei na mão já sem vida. Contrariada pela exigência de te voltar a sentir levanto-me da cama ,que ainda tem o teu cheiro, e corro até à aparelhagem. Quando o som me atinge, as lágrimas caem pela primeira vez. Balanço-me ao som da última música que dançámos juntos e deixo-as marcarem os caminhos que tantas vezes percorreste com as tuas mãos. Abraço-me, fingindo que é o teu corpo que me embala e despeço-me de ti.

(Double-Drabble para o concurso do Creative)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Liberdade


Corro em direcção a ti, saltando barreiras invisíveis que me apertam a alma. Mãos puxam-me para o nada, para o vazio da inércia e do silêncio. A pele arde-me com o toque do medo e faz-me lembrar a dor de permanecer calada no meio do barulho da injustiça. Lembro-me do preconceito que sempre me rodeou e revolto-me com a imagem. Tenho a tentação de parar. Mas não posso, pois levo comigo a esperança de milhares de mulheres que lutaram por ti. Corro mais depressa, ignorando as vozes, e alcanço-te. Abraço-te, enquanto as lágrimas caem e eu grito, enfim: LIBERDADE!


(TEXTO CONCEBIDO PARA O CONCURSO DE DRABBLE 1º FASE DO PORTUGAL CREATIVE :P)

Título Original: The Year of Fog


Autor: Michelle Richmond

Editora: Editorial Presença

Colecção: Grandes Narrativas, nº474

Tradução: Maria João Ferro

Data 1ª Edição: 20/07/2010

Sinopse:
 Uma mulher e uma criança passeiam na praia, numa fria manhã de Verão. O nevoeiro é tão denso que a visibilidade não ultrapassa alguns metros. A criança, irrequieta, solta-se por momentos da mão da mulher e não volta a ser vista. Fazem-se repetidas buscas, mas decorrem dias, semanas, meses e não se encontra rasto da menina desaparecida. Uma história pungente, escrita da perspectiva de uma mulher que, por uma desatenção de segundos, se torna responsável pelo desaparecimento da filha do homem que ama.


Opinião:

Com uma linguagem fácil e cativante, Michelle Richmond traz-nos a história de desespero de Abby, que num momento de distracção visual, perde de vista a filha do seu noivo, Emma, e ela desaparece. Misturando a busca incessante do casal com vislumbres do complexo mundo da fotografia e tocando nos segredos da memória, a autora estimula o nosso conhecimento e deixa-nos expectantes por aquilo que virá a seguir.


"O Ano do Nevoeiro" é um relato vivido do desespero de todos os pais que passaram pela experiência traumatizante de perder um filho. O passar dos dias a conta- gotas, a sensação de impotência e o desgaste emocional são descritos habilmente, com a dose certa de dramatismo, sem exageros ou falsas pretensões de impressionar mais do que o necessário e é isso que faz com que o leitor fique com o coração apertado e sinta o desejo premente de ajudar na busca de Emma.


Contrabalançando a tensão pintada em cada página, Richmond oferece-nos um final diferente do que acontece na maioria dos casos da realidade, mas apesar do cheiro a milagre que fica no ar, a autora não deixa de nos passar a mensagem que a dor da perda deixa cicatrizes profundas que transformam a vida de modo indelével.


Um livro forte e sentimental que nos desenha o amor de uma forma muito mais abrangente. Um tributo a todos os que já passaram pela mesma dor.