Inspiração



Um bocadinho de mim em palavras soltas, libertas pela digitalização da mente.

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Fragmento da Footprints in the sand (my book)





"Desci a Rua do Alecrim dentro do pequeno eléctrico que todos os dias percorria as ruas de Lisboa. Sentada no meu lugar junto à janela via o frenesim que se vivia lá fora.
Era segunda-feira e as pessoas agitavam-se saindo do trabalho, prontas para rumarem a casa e encontrar o conforto do lar. O eléctrico ia cheio e a multidão à minha volta acotovelava-se para conseguir uma melhor posição. Normalmente toda esta agitação me fascinava e eu apanhava-me a analisar as reacções que me chegavam. Mas hoje não… hoje a minha mente estava perdida nas ondas mais revoltas do oceano de pensamentos que assolava a minha mente. Vagueava entre os prós e contras, entre a consciência e a emoção.
Apeei-me junto ao Largo de Camões satisfeita por abandonar aquele aglomerado de gente que me comprimia. Respirei o ar fresco da noite e olhei em volta. O largo estava polvilhado por grupos de jovens que descontraiam depois de um dia de faculdade. Ainda traziam consigo os dossiers e os livros que os acompanhavam durante todo o dia, mas rapidamente os abandonavam em qualquer vão de escada que ficasse perto de onde se encontravam. O seu riso voava até ao sítio onde eu estava e a descontracção era palpável no ar. Eu reconhecia-lhes os gestos, porque sabia que eu faria exactamente a mesma coisa em outro dia. Ali seria o meu lugar, junto com o meu grupo de amigos, tentando esquecer a pressão dos exames, os trabalhos pendentes ou as horas intermináveis de ensaios que nos esperavam no dia seguinte. Porém, naquela noite não seria assim, porque eu precisava de estar sozinha e pensar. Tinha até arranjado uma desculpa para a Matilde não me acompanhar. Depois da conversa dessa tarde, tinha dito à minha amiga que ia ensaiar (Matilde não me acompanhava aos ensaios desde que ficara doente). Não era mentira, pois de facto iria ensaiar mas não agora. Primeiro precisava de espairecer e relaxar…sozinha.
Senti a brisa fria do vento, apertei mais o casaco contra o corpo e comecei a descer rumo à Brasileira. Sentar-me naquela esplanada e observar os transeuntes que passavam, muitos deles turistas, que se misturavam com a gente desta cidade que os recebera de braços abertos, era das coisas que mais me relaxava. Será que concentrarmo-nos na vida das outras pessoas faz com que a nossa se torne mais suportável?
Sentei-me na única mesa vazia e olhei para o meu colega de esplanada, a estátua de Fernando Pessoa ali estava pronta a fazer-me companhia durante o meu serão. A sua expressão era a de quem esperava pacientemente a passagem do tempo, sem preocupações nem ansiedades. Será que seria assim mesmo a sua expressão quando ainda vivia? Perdida nestes pensamentos que nada tinham a ver com a decisão que tinha que tomar, consegui pedir um café com natas.
Imitei os gestos de Pessoa e abri o livro que trazia comigo. Mas por mais que tentasse ler e conjugar ideias o meu pensamento fugia sempre para a imagem de Miguel.
Recordei-me da primeira vez que o tinha visto, no refeitório do Conservatório, com um círculo de miúdas totalmente derretidas por ele a pedirem-lhe para cantar. Ele, com um sorriso que conquistaria multidões ao longo dos anos, aceitou e em segundos a sua voz enchia toda a sala fazendo com que até os mais distraídos voltassem a sua atenção para ele. Apesar da sua voz quente me fazer arrepiar o único pensamento que me cruzou a mente foi o quão exibicionista ele era. Essa opinião persistia até hoje e sabia que era muito difícil mudá-la.
Como é que poderia trabalhar com uma pessoa assim? Com alguém que me provocava tanta aversão? Mas também não me conseguia deixar de perguntar porque é que ele me afectava tanto. Simplesmente não o conseguia ignorar.
Paguei o café que nem sequer bebi e desci a rua em direcção aos Armazéns do Chiado. O ar estava impregnado do cheiro de castanhas assadas e o fumo característico das panelas dos vendedores povoava aquelas ruas. Como era bom sentir o pulsar de vida em Lisboa! Sentir estes cheiros que se misturavam com a voz desconhecida de tantas pessoas.
Andei durante uns vinte minutos, vendo montras e visitando alfarrabistas tentando que algo me cativasse. Tentando fugir da decisão iminente que tinha que tomar.
E se ele não aceitasse? De certeza que todas as raparigas do Conservatório já haviam tentado que Miguel se tornasse seu parceiro. Porque é que havia ele de me dizer que sim a mim?
Pensei em voltar para trás e apanhar o eléctrico para casa, confiando que a minha almofada seria a minha melhor confidente, mas de repente chegou até mim uma voz inconfundível que estava entrelaçada à história de Lisboa para sempre. Segui o som dos acordes da guitarra portuguesa e o tom daquela voz que arrastava multidões. No meio da baixa lisboeta uma carrinha de fados parava e deixava os turistas apreciarem a voz de Amália. O choro da guitarra fascinava a todos e a saudade que estava patente naquela voz deixava uma lágrima no canto do olho. Os meus olhos fecharam-se e senti cada toque daquele fado. Percebi o quanto a música de Amália e o seu talento tocavam cada um do presentes e percebi que o que eu mais queria era que a minha música influenciasse assim os sentimentos dos outro, que os tocasse de forma tão profunda…Valeria isso todos os sacrifícios?"

1 comentário:

  1. Lindo *_*

    Adoro a descrição que fazes da zona da Baixa/Chiado...Quantas vezes vagueei por aquelas mesmas ruas, ao final do dia/príncipio de noite, só para apreciar a beleza que Lisboa tem e perder em pensamentos. Adoro fazê-lo, principalmente no Inverno. Acho que tem um toque mágico *_*

    Depois de lido este excerto, a conclusão é: tenho mesmo que ler mais! Parva que sou, nunca tinha lido nada da FS --'
    Dei por falta de algumas vírgulazitas ali no texto, mas nada muito grave. Acontece a toda a gente.

    Adorei *___*

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