Inspiração



Um bocadinho de mim em palavras soltas, libertas pela digitalização da mente.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Grãos de areia




- Mãe quero ir contigo apanhar conchinhas! – Maria esperava ansiosa com o balde na mão e olhos brilhantes.

- Desta vez não, querida… - Não gostava de estragar a expectativa da minha filha mas precisava mesmo de estar sozinha.

- Porquê mãe? Tenho de apanhar conchinhas para oferecer ao pai quando ele voltar… Por favor, por favor, por favor? – Disse juntando as mãozinhas em sinal de prece.

- Não, Maria e acabou-se a conversa. Vais ficar aqui e não quero ouvir nem mais uma lamúria ouviste? – Tinha falado de maneira demasiado ríspida e sabia disso mas agora não havia volta a dar. Maria correu para o quarto chorando baixinho e senti o peito pesado de culpa. Não queria magoar a minha filha, muito menos nesta altura.

“Quando voltar falo com ela com calma” pensei. E teria mesmo de o fazer.

*

Olho o banco de areia ao fundo e sinto o desejo súbito de atravessar para a outra margem. A lembrança do meu corpo junto ao teu e de todas as juras de amor que fizeste ao meu ouvido naquele dia ainda me arrepiam a pele. Momentos perdidos em grãos soltos de areia dourada.

Com o sol dizendo adeus à vila que nos acolheu, quando fugimos do nosso antigo mundo, sento-me enquanto desenho no piso molhado o teu nome. As cores abraçam-me em segredo e o meu peito enche-se de vermelhos e laranjas que me fazem fechar os olhos e viajar novamente para o passado.

O vestido branco que tu mais gostas acaricia-me o corpo. Vesti-o para ti, mesmo sabendo que nunca mais ouvirei a tua voz dizer-me o quanto realça a minha pele morena. As saudades batem forte quando as memórias se tornam tão vivas como neste momento em que quase sinto o teu cheiro. Como vou viver sem ti, meu amor?

Na minha mão aperto os envelopes já gastos que contêm as únicas três cartas que recebi vindas desse país que te roubou de mim, durante estes anos de ausência forçada. Reli-os vezes sem conta e é por isso que o branco do papel onde salpicaste a tua história tornou-se velho e gasto. Sei que vou ler estas cartas hoje pela última vez e por isso escolhi este sítio que nos abrigou quando os piores pesadelos se tornaram parte da nossa realidade.

Passo suavemente os meus dedos pela superfície rugosa do papel, imaginando que também o fizeste e este momento une-nos novamente. Pelo menos, na minha pobre e triste ilusão.

*
21 de Dezembro de 2007

Querida Anne,

O tempo escuro lá fora confunde-me. Neste sítio nunca sei quando já é noite ou se a escuridão que vejo é apenas fruto dos vestígios cinzentos de uma explosão que dizimou mais vidas. Hoje não faço ideia do que se passa lá fora. Às vezes ouço as vozes de colegas que passam apressados para se juntar às vigílias mas parecem-me muito distantes, como se fizessem parte de outra realidade que não a minha. À semanas que não me era permitido descansar, mas quando estava quase a tocar o ponto de esgotamento, alguém se lembrou que os médicos também precisam de repouso.

Se já for noite, sei que estarás com Maria no quarto a aconchegar-lhe a roupa para ela dormir. Sei que a tua voz vai encher o quarto ao cantares aquela canção de embalar preferida dos três. E sei também que a minha presença, encostado à ombreira da porta, olhando com carinho as mulheres da minha vida.
Meu amor… como dói estar longe e saber que tão cedo não vou vislumbrar o azul-céu dos teus olhos, nem abraçar o corpo quente e pequeno da nossa filha. Maldita guerra que me afastou de vós e daquilo que amava.

Aqui, onde a morte se encontra comigo a cada minuto sinto mais medo do que alguma vez senti. Muito mais do que experimentei em toda a minha carreira como médico, em que a vida das pessoas dependia da minha vã sabedoria. Pela primeira vez, sinto medo de não voltar a ver-vos.

Só quero que saibas que penso em vocês a cada momento. Que é a vossa imagem e a recordação de casa que me faz continuar a cada dia, esperando pacientemente a hora do retorno. Tenho que voltar ao serviço. Jerry chama-me. Lembras-te dele? Tenho a certeza que sim. Tem sido um bom amigo e é com ele que tenho desabafado. Somos uma ajuda um para o outro. Tentamos manter-nos sãos no meio deste mundo louco.

Beija Maria por mim e diz-lhe que sinto muito a sua falta.

E lembra-te…Amo-te mais do que tudo, Anne… Para sempre

*

Um vento frio começou a levantar-se enquanto lia novamente as tuas palavras. Foi como se viesse acompanha-las, trazendo o frio da distância para junto de mim. Olho para o céu colorido à minha frente e penso nas inúmeras vezes em que nos deitamos juntos neste areal, ouvindo o leve e quase murmurante som das ondas, enquanto sincronizávamos a nossa respiração e o bater do coração. Éramos um só. As lágrimas ameaçam sair, mas, autoritária, mando-as fecharem-se dentro de mim. Não quero chorar agora. Talvez mais tarde…

*
01 de Novembro de 2008

Meu amor…

Hoje recebi a notícia que mais temia desde que cheguei. A guerra piorou e milhares de soldados nossos faleceram em combate, tentando honrar uma pátria que não os salvará. Porque lutam eles afinal? Qual o objectivo desta guerra sem sentido? Desde que cheguei, há dois anos atrás, vi todos os homens deixarem os seus postos para pegarem em armas e combater no meio de pessoas com sede de vingança, no campo de batalha sangrento que tanto queriam evitar. Hoje foi a minha vez. Pela primeira vez entrei num campo de batalha e disparei sobre aqueles que um dia jurei proteger, sem pensar na raça ou religião. Em quem me tornei, Anne? Aquilo que sinto é tão difuso como a esperança de voltar em breve.

O desespero toma conta de mim à medida que o tempo vai passando e a distância entre nós se adensa cada vez mais. Minha querida, faz-me voltar para ti…

A dor e a solidão preenchem todo o meu ser e eu duvido agora de quem sou ou daquilo que um dia pensei ser. Tu e a Maria são os únicos pedaços de verdade que me restam neste mundo.

Espera por mim por favor… Amo-vos.

*

Os sinos da igreja repicam e eu sei que está quase na hora de voltar para junto da nossa filha. Os grãos de areia agitam-se no ar, dançando ao sabor do vento frio que me toca a pele. Sei que não aguentarei muito mais a dor que me invade, mas insisto e leio em voz alta as tuas últimas palavras, como se quisesse contar ao mundo aquilo que sofro.

*
12 de Março de 2009

Anne…

Escrevo-te, aproveitando as réstias de luz que esta vela me oferece. A luz eléctrica foi cortada ontem e não sei quando voltaremos a ter esse luxo.

As minhas mãos ainda tremem e por isso não estranhes a caligrafia irregular e nervosa. Jerry morreu hoje, vítima de uma bala perdida no meio do campo de batalha. A dor que sinto por perder um tão querido amigo só é suplantada pela dura consciência de que poderei não voltar para ti com vida. A morte torna-se mais real a cada dia que passa e eu sei, agora, que poderei ser o próximo na sua lista infindável de vítimas. Sei que me poderás achar dramático mas isto é somente aquilo que vejo ao meu redor. O manto negro do luto cobriu todo o quartel e todos nós carregamos nos ombros o peso de um caixão já prometido pelas armas impiedosas dos nossos inimigos.

Meu amor… se isso acontecer não chores. Não vertas lágrimas pela minha perda. Alegra-te antes por aquilo que vivemos e por te ter deixado mais do que a minha própria vida, por te ter deixado a Maria. Se isso acontecer, acaricia os seus caracóis negros e canta mais do que uma canção de embalar. Uma para mim e outra para ela.

A luz da vela extingue-se enquanto escrevo estas parcas linhas. Tenho tanto para te dizer, tanto para te declarar mas sei que nada disso é suficiente. Por isso, vou confiar que mesmo longe lês o meu coração e que sentes em ti o amor infinito que te tenho.

Nunca me esqueças meu amor, pois eu sei que a tua imagem vai ser a última a extinguir-se na minha mente.

Amar-te-ei para sempre…

*
Ergo-me com dificuldade. Os soluços que fazem estremecer o meu corpo aumentam ainda mais quando olho para o último envelope que tenho na mão. Todos os outros jazem no chão ao lado do meu corpo esguio e subitamente envelhecido. Não está aberto, nem nunca o será, mas a faixa negra que o preenche diz-me mais do que as condolências prestadas por alguém que nunca nos conheceu. Foste embora… Partis-te tal como havias dito…

Ouço um leve restolhar de passos, pertencentes a alguém que passeia na praia. Não me viro para saber quem é, pois não quero que vejam a minha dor. Não chorarei para os outros, tal como me pediste, e hoje cantarei duas canções de embalar a Maria. Uma para ti e outra para ela.

“Como sentirei a tua falta, meu amor…”, penso enquanto abro um buraco por entre a areia molhada desta enseada que nos conheceu tão bem. Pego em todos os envelopes e com cuidado e carinho, depositando um beijo em cada um deles, enterro-os junto com as recordações tristes da guerra injusta que te levou de mim.

“Adeus, meu amor” murmuro.

*

Caminho descalça, sentindo a areia moldar os pés. Vou reparando nas pegadas indeléveis que deixo areia, enquanto me despeço de ti. De súbito, as minhas pegadas juntam-se a outras que me parecem familiares. O choque invade a minha mente e captura os meus membros. O tempo volta atrás e eu recordo todas as vezes em que as nossas pegadas se cruzaram neste areal. As lágrimas correm livres novamente. Doce ilusão…

*

-Pára. Pára! Mais cócegas não!

O riso de Maria chega até ao inicio do nosso jardim. Enche o ar de uma maneira melodiosa e eu sinto pela primeira vez hoje um frémito de esperança e amor. Ela é a toda a minha vida a partir de agora.

A minha mente vagueia como que perdida em recordações tão reconfortantes como o calor de fim de tarde que me banha toda a moradia. Porém de repente a realidade cai sobre mim e eu percebo que Maria deveria estar sozinha em casa. Não temos amigos que frequentem a casa, portanto, com quem é que ela fala?

Corro até à entrada, porém quando tento entrar em casa algo pequeno e agitado embate nas minhas pernas.

- Mãezinha!!!- grita ela enquanto me abraça com força.

- Maria, o que aconteceu? Onde vais com tanta pressa? Quem está aí? – pergunto enquanto tento espreitar para dentro de casa.
Maria puxa-me o vestido fazendo com que eu me baixe até ao seu nível. Dá-me um beijo repenicado e sai a correr gritando: - Vou apanhar conchinhas mãe! O pai chegou!

8 comentários:

  1. Adoro este texto! É o que mais gosto de todos! Crias sempre amores sofridos e «quase» impossivéis. Mas no final dos textos há sempre uma luz ao fim do tunel, e acredita que consigo sentir em mim essa esperança também.

    Bom trabalho miúda, continua assim!

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  2. Tu dás-me muito material para trabalhar :D

    Continua assim, amiga.. ainda me dás um nobel xD

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  3. É preciso repetir aquilo que sinto em relação aos teus textos??????

    :)

    Escreve 1 livro :)

    beijinhs

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  4. Amiga viste ler :)

    Espero que gostes do meu cantinho :)

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  5. Achas que deixava passar sem ca vir????

    Es maluca :)

    O meu cantinho e que anda desactualizado...

    A ver se lhe dou mais atenção :)

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  6. Eu ja li isto la no PC nao foi? mas nao consigo encontrá-lo =S

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  7. Adorei o texto, gostava de ler a continuação.

    Continua....


    Marilia

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  8. Fiquei muito orgulhosa de ti, continua a partilhar a tua criatividade connosco.
    Tens a teu favor uma mente jovem e uma imaginação com longas asas.Quem sabe, "tomowow", "tomowow"...

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