Inspiração



Um bocadinho de mim em palavras soltas, libertas pela digitalização da mente.

segunda-feira, 8 de agosto de 2011

"Time is on my side"

O empregado toca-lhe ao de leve no ombro que a camisola deixa a descoberto e pergunta-lhe, num tom profissional e desprovido de ambiguidade, se quer mais café ou apenas a conta. Já é a terceira vez, no meio das cinco horas em que permanece sentada, que a tenta alcançar no meio do barulho dos seus pensamentos. Teme que ela vá, pois o tempo enquanto ela fica é precioso mas assusta-o a quietude melancólica da sua alma.
Ela ouve-o, finalmente, mas apenas parcialmente, como se o som daquela voz, que não reconhece, viesse de muito longe. Outra mesa, outra sala, outra realidade que não a dela. Consegue balbuciar qualquer coisa indistinta e aponta para a chávena meio cheia à sua frente.
 Com um suspiro, resignando-se e percebendo o estado de alienação em que ela se encontra, o empregado desiste e mistura o liquido quente e amargo com o restante frio e polvilhado de açúcar. Resquícios das últimas horas em que só o corpo dela se mantêm ali. Com um olhar de pena e de conhecimento, fruto de anos de experiência no desgosto alheio – privilégios de quem observa silenciosamente – afasta-se e deixa-a apenas acompanhada pelos seus fantasmas.
Não importa quem passa, seja cá dentro ou lá fora. Se faz chuva ou sol? Pouco lhe importa. Tem os seus pensamentos, basta-lhe isso para que num dia de chuva faça sol e num dia de sol se faça chuva.
Vazia de pensamentos durante alguns segundos levanta a cabeça e olha através do vidro. Leva a mão à chávena morna e indica-lhe o caminho até aos seus lábios preenchidos por um vermelho garrido. Um pouco de café enche-lhe a boca. Pega num pequeno guardanapo e seca os lábios deixando a marca do seu batom rouge allure numa das pontas.
O empregado distraía-se atrás do balcão a olhar para ela. Ele queria entrar dentro da sua cabeça e saber que pensamentos a deixavam assim. Nunca a tinha visto por ali mas o magnetismo que ela emanava deixa-o preso. Enclausurado na tentação de a decifrar.
Ela pega na colher e afoga-a no café. Começa a brincar com ela fazendo pequenos círculos dentro da chávena ainda cheia e deixando um rasto de corrente finas de espuma. Volta a perder-se nos seus pensamentos e a chávena é agora só um adereço físico que a esconde dos olhares dos outros. Mas não do olhar dele.
Os seus pensamentos parecem magoá-la. A única coisa que a desperta é a pequena campainha que existe por cima da porta. Sempre que alguém entra e o som estridente se faz ouvir ela estremece, fazendo com que a sua pele branca se encha de milhares de pontos assinalados pelos arrepios. Esperava que, ao fim de todo aquele tempo, ele pudesse chegar. Já era tempo; Tenho saudades do seu perfume. – Dizia ela para si em surdina.
Os lábios dela mexem mas ele, encerrado atrás do balcão no fundo sala, não consegue ouvir o som das suas palavras. A espera dela angustia-o, pois as rugas de expressão que lhe atravessam a fronte narram-lhe o sofrimento que ela reservava para si.
Quem seria ele? Que poder tinha para a fazer aguardar assim tão intensamente pela sua chegada?
Ela enrola agora as madeixas de cabelo negro nos dedos finos e delicados. Uma carícia muda que a conduz a memórias que lhe arrancam um sorriso fugaz. Demasiado rápido para apagar a mágoa que ela transporta consigo, mas suficientemente longo para deixar uma marca indelével nele. Um alguém que ela não reconhece, nem nota. Um nada que sente nela a inexplicável atracção de encontrar o seu tudo.


Texto escrito em conjunto com o Ricardo - O Resto é Silêncio.



1 comentário:

  1. Este texto é complexo! Confesso que tive que estar com muita atenção para percber a sua mensagem.
    Gosto da maneira como tu escreves e envolves a tua escrita num misterio, num gostinhoq ue fica sempre a saber a pouco e dá vontade de saber sempre mais! :D

    SAWABONA

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